Manaca. «É só disparates. Quantos autogolos já se marcaram em Portugal?» Versão para impressão
Sábado, 10 Março 2012 12:09

120310_manacaO defesa joga ao ataque sobre um autogolo em Guimarães que decide o título de campeão 79/80 a favor do Sporting e em detrimento do FC Porto

 

Sporting e Vitória de Guimarães têm um longo historial na 1ª divisão. Em 76 edições do campeonato, é a 67ª vez que se defrontam. O i quis encontrar um jogador das duas equipas. Salta logo à vista Pedro Barbosa mas não nos atende. Segue-se Pedro Martins mas deixemo-lo tranquilo porque o treinador do Marítimo precisa de toda a concentração para ultrapassar o Sporting na classificação. O seguinte é Paulinho Cascavel, já entrevistado pelo i. Sobra quem então? Eh lá, tantos: Paulo Bento, Dimas, Capucho, Quim Berto e muitos, muitos mais. Decidimo-nos por um que já não está em Portugal.

Manaca lá fora (Toronto, Canadá) e é conhecido nacionalmente (aqui, Portugal) por ter marcado um autogolo em Guimarães (0-1) que decide o campeonato a favor do Sporting e em detrimento do FC Porto em 1979/80. Veredicto: inocente. Manaca marca uma época à custa de golos e mais golos, uns de cabeça, muitos de livre directo. Em 15 épocas na 1ª divisão, marca 23 golos, por seis clubes (Sanjoanense-3, Sporting-3, Vitória de Setúbal-6, Braga-3, Vitória de Guimarães-3 e Estoril-5), dos 21 anos de idade aos 36. Um hino à regularidade. E, já agora, à memória. Aos 65 anos, Manaca fala do passado como se o estivesse a ver naquele preciso instante.

 

Boa noite Manaca, está bom?

Ya [vai ser quase sempre assim]

Daqui Rui Miguel Tovar, do jornal i de Portugal.

De Portugal? Xiiiiii [vai ser quase sempre assim], não é já muito tarde aí?

Já passa da meia-noite mas queremos falar consigo.

Então, algum motivo especial?

É o fim-de-semana de Sporting-Vitória de Guimarães e o Manaca representou as duas equipas. Feita esta introdução, pergunto-lhe como é que foi de Moçambique para Lisboa?

Jogava no Sporting da Beira e o Sporting de Lisboa interessou-se por mim mas só depois de FC Porto e Benfica. Naquele tempo, era menor e não tinha qualquer hipótese de escolha. Esse pelouro pertencia aos meus pais. Ora bem, o meu pai era sportinguista e… Está a ver, não está? Acabou por juntar o útil ao agradável, até porque eu também era, e sou, do Sporting.

No Sporting, chegou, viu e venceu?

Nããããão. Cheguei numa altura em que o Sporting tinha acabado de ganhar a Taça das Taças em 1964 e toda a defesa do Sporting estava a preparar-se para o Mundial-66.

Mas o Manaca não era avançado?

Em Moçambique, jogava como interior. Marcava muitos golos. Ganhei duas Bolas de Prata como melhor marcador no Sporting da Beira.

Então recuou no terreno, foi?

Ya. Defesa-direito, esquerdo ou central. Eu queria era jogar. Diziam-me para fazer de defesa-direito e eu fazia. Foi assim que fui bicampeão nacional e venci quatro Taças de Portugal, pelo Sporting.

Bicampeão em 1970 e 1974. Naquela altura, o Benfica era difícil...

Não era difícil, era dificílimo. Um campeonato nosso equivalia a dois ou três [risos]

Lembra-se de algum dérbi especial?

No ano em que fomos campeões, em 73/74, recebemos o Benfica e estávamos com quatro pontos de avanço a cinco jornadas do fim. Por ironia do destino, marcamos o 1-0 logo no início [Yazalde, 8’], o que dava uma tranquilidade enorme. Ora bem, o jogo acabou 5-3 para o Benfica. Foi em Março de 1974, o último dérbi pré-revolucionário.

Também participei naquela final do Jamor 3-2 com o Benfica, com hat-trick do Eusébio. Era uma equipa muito bem equilibrada. Digo-lhe o onze de cor e salteado. Mais os suplentes. E esse Benfica jogava melhor futebol que este Benfica. Não há a mínima comparação. E não me venham cá com histórias do tempo. Por favor! Naquele tempo, o Benfica entrava em campo, impunha-se e acabava com o jogo. De qualquer maneira, isso é problema do Benfica. O meu problema é que o meu clube não anda direito.

O Sporting é campeão em 1974. Na pré-época, contrata Di Stéfano para treinador. O que aconteceu para ele sair ainda antes do arranque do campeonato?

Disparates.

Como?

Não chegou a dois meses. O Di Stéfano tinha uma forma especial de falar com os jogadores e tinha uma ideia de jogo bastante própria. Fazia acreditar os jogadores no seu potencial e até mais além. Mas nunca percebi a razão daquele desenlace. Se me perguntassem na altura ou agora, eu diria a mesma coisa: ‘O que foi que este homem fez de errado para ir embora um mês e meio depois de ser contratado?’ Ainda não entendi se prevaleceu a vontade do Di Stéfano ou dos dirigentes. Não foi a primeira nem a última vez que isso aconteceu. É como agora: sai um, entra outro. Que a este treinador não se exija grandes jogos, grandes exibições e grandes títulos. A sua missão é preparar a equipa para o ano. Claro que importa ganhar e jogar bem mas num clima favorável. Não neste ambiente. Assim, nunca ninguém vai conseguir. Nem que se contrate o Messi. Ou se vá buscar o Ronaldo. Eram todos falíveis.

O Messi que hoje marcou cinco golos ao Leverkusen.

Xiiiiiiiiii. Eu ouvi na rádio que estava 2-0 com dois golos dele. Agora cinco? E sabe que este sábado vi o Leverkusen fazer um grande jogo com o Bayern. Ganharam 2-0 e fiquei entusiasmado pela forma como jogaram no contra-ataque para derrotar o Bayern.

Ouviu na rádio?

Sim, aquilo fala-se muito do Barcelona. Às vezes, o jornal não publica os resultados do campeonato português mas os do Barcelona saem sempre. É uma questão de títulos.

Por falar neles, ganhou seis pelo Sporting. Porque é que saiu de Alvalade e voltou duas épocas mais tarde?

Saí três vezes e voltei outras três. Primeiro, saí emprestado para a Sanjoanense. Depois, saí porque tínhamos problemas internos de balneário. Esses problemas obrigavam-nos a repensar. Tocava directamente a nós, africanos. Nessa altura, o Sporting tinha uns oito ou nove africanos, de Moçambique, Angola... Na equipa principal, jogavam eu, Dinis e Alhinho. Nós não aceitámos determinadas peripécias e decidimos sair, já que acabávamos o contrato no mesmo ano.

Que tipo de peripécias?

Ahhhhhhhhh Não quero falar disso por uma questão de consciência tranquila. Só lhe digo que nos sentíamos a mais. Então se estamos a mais, ficam vocês. Nunca nos arrependemos disso. Tínhamos a consciência tranquila do que estávamos a fazer. Não sou camaleão

Leão sim, camaleão não?

É isso mesmo. Sou leão. E sou leão de juba negra, o maior leão de África. Mas esse clube aperta-me o coração. Já nessa altura. E agora também.

E o que aconteceu nessa época?

Com o consentimento de Dinis e Alhinho, tive um almoço com Dr. Sousa Marques, o director do departamento de futebol. Todos eles sabiam o que se estava a passar. E saímos os três. Eu para o Vitória de Setúbal, o Dinis e o Alhinho para o FC Porto.

E volta ao Sporting em 1977?

Sim, porque algumas pessoas, as das peripécias, já não estavam lá.

O Sousa Marques ainda estava lá?

Sim, foi até ele que me fez a proposta.

E porquê só um ano?

Os números da renovação não me agradaram.

Saiu para onde?

Vitória de Guimarães.

O Vitória oferecia-lhe mais que o Sporting?

Exactamente.

A sério?

Se eu dissesse os números, você acharia ridículo. Vou contar-lhe só isto: o Sporting tinha um director chamado Abrãao Sorin. Certa vez, acabei o meu contrato e ele: ‘Ò Manaca, o Sporting não tem nenhum contrato para apresentar. Ficas a ganhar o mesmo mais dois anos. Se quiseres, tudo bem. Se não quiseres, não jogas em lado nenhum.’ Porque na época não havia livre circulação de jogadores.

Como é que resolveram essa situação?

Como é que acha que resolvi? Isto era como na época dos escravos. O que faziam os escravos? …

As equipas portuguesas deixaram de contar com os africanos. Contratam meia dúzia de argentinos, meia dúzia de brasileiros e misturam com croatas e sei lá. As equipas perderam identidade e deixaram de lado alguns princípios. Quando os quiserem recuperar, já será tarde.

Quais princípios?

Repare só: diz-se que o Sporting esteve em Angola para abrir academias, ok? Vão para lá e a primeira coisa que fazem questão de pedir é três milhões de dólares aos angolanos. Quer dizer, queriam que lhes pagassem? Mas o interesse é só dos angolanos? Onde é que o Sporting quer ir assim? Não vai a lado nenhum. O Sporting veio cá a Toronto e não me lembro de ter pedido três milhões de dólares aos canadianos. Estão a pensar o quê? Que Angola é a república da banana do passado? Nem pensar. Acham que fazem, desfazem e ainda acham que o pessoal tinha de suportar isso. Não, nada disso. Os tempos mudaram. Em Angola, pelo menos. Em Portugal, a forma de actuar continua a mesma. Se a política mantém-se, o Sporting não vai a lado nenhum. Que eu saiba o Benfica também tem uma coisa dessas [academia] e não me lembro de ter pedido dinheiro. Que eu saiba...

Outra vez Sporting-Benfica. Você gosta...

O meu primeiro dérbi foi para a Taça de Honra, no Restelo. Empate 1-1 e eu faço o golo, na sequência de um canto. O jogo foi a penáltis e ganhámos ao Benfica de Coluna, Eusébio… Mas também gosto de Sporting-Belenenses.

Então?

É uma das minhas melhores histórias. O Sporting ganha 1-0 no Restelo a um Belenenses forte. O prémio de vitória era de 300 escudos ou algo parecido. Não era grande coisa. A verdade é que o Sporting não jogou bem e quando nós pensávamos que íamos receber o prémio, recebemos uma carta da direcção do Sporting a dizer: ‘Exmos tátátátátá nome do fulano, devido ao resultado do jogo com o Belenenses, o prémio que deveriam receber reverte para uma multa pela falta de aplicação’ Olha só, belas épocas hein! Agora tem graça contar, na época não teve graça nenhuma. 300 escudos era muito.

Falta de aplicação. Isso é daquelas bocas. Também lhe falaram assim quando marcou o autogolo em Guimarães a favor do Sporting?

Disparates. Olhe, quantos autogolos já se marcaram em Portugal?

Xiiiiiii, contá-los é difícil.

Good. Porque é que não falam de outros autogolos, então? Porquê só desse?

Porque é o do título de 1979/80.

Sim, mas é um autogolo como qualquer outro. O FC Porto quer é um bode expiatório, mas… Eu próprio já fiz autogolos no Sporting, com o Hibernian, na Escócia, para a Taça UEFA. Perdemos 6-1 e eu fiz um autogolo. Meti o corpo e a bola vai para dentro. É azar. Em Guimarães, também foi assim, azar. Não fiquei rico, não fiquei pobre, continuo a ser o que sou. Só com uma defesa... ... ... um autogolo de um preto está comprado, um autogolo de um branco é má sorte.

Por isso é que foi do Vitória para o Estoril no final dessa época?

Não, essa decisão já estava feita há muito. Queria estar no Estoril, ao lado da minha família que vivia em Lisboa. Fiquei admirado pela acusação, isso sim, mas mantive-me calmo e procurei seguir em frente. A mim, chamou-me à direcção. O jogo foi domingo, fui para Lisboa na segunda-feira para aproveitar a folga com a família e voltei a Guimarães na terça-feira para ser dispensado pelo departamento de futebol.

Foi para o Estoril, na 2ª divisão.

Ya. No primeiro ano, subimos de divisão. E marquei ao Sporting. Perdemos 3-2 em Alvalade mas marquei o 2-2.

Aliás, o Manaca marcou aos três grandes.

Com o FC Porto, até marquei dois no mesmo jogo, pelo Vitória. E o Cubillas marcou pelo FC Porto. Até parece que estou a ver agora o jogo. Um foi de cabeça, antecipei-me ao guarda-redes, o Rui. O outro de livre.

Era marcador de livres?

Sim, fiz muitos. Em Braga, fui o segundo melhor marcador da equipa na época 76/77. O Chico Gordo foi o melhor do Braga, eu fui o segundo só a marcar livres. Dez ou 11, incluindo campeonato e Taça de Portugal.

E o golo ao Sporting?

O outro golo ao Sporting, quer dizer. Pelo Vitória de Setúbal. Foi de livre. O guarda-redes era o Damas. Faço o 1-0, o Sporting dá a volta e o Arcanjo empatou. Dois-dois.

E o golo ao Benfica?

Ya, foi na Luz. De livre, com o Braga. Na baliza, Bento. Esse golo foi na meia lua e tive a felicidade de apanhar a bola mesmo em cheio.

Era assim que marcava, em força?

Meio em jeito, com muita força. E sempre para o lado do guarda-redes. Todos eles têm a mania que adivinham onde vai cair a bola. Fazem que vão para um lado e vão para o outro. Ora, eu atirava para onde ele estava. Acontecia tantas vezes.

Treinava os livres?

Ya. Acabava o treino e ficava meia-hora, 45 minutos. Reunia cinco bolas e batia livres. Como não havia apanha-bolas, era eu que ia buscar as bolas e recomeçava o processo.

Também batia livres no Sporting?

Ya. Houve um então que foi lindo. Ao Vitória de Setúbal, o grande Vitória daquela altura. Bati por cima da barreira e a bola caiu na baliza. Lindo. Na baliza, estava o Torres. Ele deu-me o lado e eu aproveitei.

Com tantos golos, como nunca foi à selecção?

Fui convocado uma vez. O Sporting recebeu um telegrama da federação e um dirigente do Sporting pediu-me para estar atento. Só que nessa semana dei uma entrevista. Naquele tempo, o Juca e o Pedroto eram os seleccionadores da selecção, mas havia um comandante. José Maria Afonso, acho

Manuel da Luz Afonso?

Sim, sim, lembro-me desse nome. Era o general lá do sítio [selecção], tinha mais boca como treinador do que como dirigente. Mandava em tudo. Eu dou a entrevista e digo que admitia muito mais o Juca ou o Pedroto a dizer-me o que quer que fosse a respeito de futebol do que ele, Manuel da Luz Afonso. A partir daí, eu joguei fora. Fui banido.

 

In ionline.pt


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