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Quinta, 28 Março 2024
Marco Chagas. "O Joaquim Agostinho mergulhou e desapareceu! Minutos! Eu em pânico e o tipo nada!" PDF Versão para impressão Enviar por E-mail
Segunda, 25 Abril 2011 21:40

110425_marco_chagasAos 54 anos, o tetracampeão da Volta a Portugal vai correr no deserto de Marrocos. Antes dos 600 km de BTT, a entrevista ao i

 

Uma corrida de BTT pelo deserto - 600 km. Marco Chagas, recordista de vitórias na Volta a Portugal (quatro, em 1982, 1983, 1985 e 1986), não tinha mais nada para fazer do que ir até Marrocos competir numa das mais duras provas do planeta. Voltou a fazer dos treinos coisa séria e no próximo sábado lá estará no arranque, a encarar o "bicho". A expressão é emprestada por ele, porque Marco Chagas é ali dos lados do Cartaxo e aquela gente trata os touros por tu. Sabe quem é que ele tratava por "você"? Joaquim Agostinho, claro.


Disse uma vez que terá pedalado meio milhão de quilómetros ao longo da carreira. E agora, aos 54 anos, ainda vai fazer mais 600 km no deserto?

Pedalei muito, devo ter pedalado uns 18 anos, mas quando aparece um desafio destes, que parece tão interessante, tenho de aproveitar a oportunidade. Isto não se desperdiça. Tenho feito desporto, mas assim também estou obrigado a fazer mais, a alguma preparação, a treinar mais. É muito aliciante e é por uma boa causa.

E o corpo ainda aguenta?

Às vezes pede-me para ficar mais uma horinha na cama, mas aí eu dou-lhe meia hora e fico com a outra para mim. Sou mexido, tento sempre fazer o máximo de desporto, é verdade que não vou com a preparação ideal para o deserto, mas acho que fiz o possível. Se não tiver nenhum problema mecânico em princípio tenho condições para terminar a prova sem grandes dificuldades.

Como é que se preparou?

O treino foi quase diário, se possível umas três ou quatro horas, se não pelo menos uns 40 minutos no rolo [bicicleta fixa] em casa. No domingo fui fazer uma maratona de BTT em Estremoz, fiz os 80 km em pouco mais de 4h20m. E ainda vou fazer mais duas maratonas antes de ir para Marrocos.

Vai fazer BTT, não leva a sua primeira bicicleta. Ainda a tem?

Tenho, tenho! Meio desmontada, tenho o quadro, as pecinhas. Sabe, é tão antiga que não consigo encontrar pneus com aquela medida. A bicicleta foi-me oferecida no Natal de 1962, mas já era em segunda mão, o meu pai reconstruiu-a e já devia ter uns dez anos. Portanto, agora deve ter uns 60!

Liga muito às recordações?

Sou um desnaturado! Ligo pouco, depois penso que devia ter mais cuidado com as recordações daquele tempo, as ofertas, os prémios. O que guardo bem guardado são as camisolas, as amarelas. Os troféus, as salvas e as placas já nem tanto... Foi tudo doado à freguesia de Pontével, supostamente é para se fazer um pequeno museu.

Como é que foram as suas primeiras pedaladas?

A partir dos seis anos. Depois, aos 13/14 anos comecei a ter mais vontade, aos 15 fiz algumas corridas e percebi que tinha pedalada, aos 16 as pessoas começaram a incentivar-me e aos 17 já era campeão nacional. Fui prematuro.

Por causa do seu tio?

Ele gostava muito de ciclismo e eu tinha uma grande ligação a ele, chama-se Ramiro Martins e tinha sido ciclista do Benfica, até foi aos Jogos Olímpicos de 1960 [em Roma]. Foi a minha referência.

Foi por isso que ainda chegou a ir treinar ao Benfica?

Aos 16 anos as pessoas incentivavam-me para dar o salto, tinha de ir mais longe do que a equipa da Casa do Povo de Pontével. Só podia ser federado aos 17 anos, tive a opção de ir para o Sporting, mas primeiro fui ao Benfica treinar porque o treinador era o Francisco Valadas, um antigo ciclista aqui da terra que ganhou a Volta a Portugal [em 1960]. Mas no fim o que acabou por pesar foi o meu amor pelo Sporting, foi assim que escolhi os verdes... Mas estive meio balançado.

Mas no Sporting a coisa não foi longe.

Fecharam o ciclismo durante nove anos, a partir de 1975. Alguns ciclistas, grandes ciclistas, abandonaram a carreira. A minha primeira Volta a Portugal, na estreia em 1976, foi feita em condições muito difíceis. Fui sexto e ganhei três etapas, mas nem sequer tínhamos técnicos. A equipa em que estava, a Costa do Sol, de um senhor muito esforçado da Abóboda [São Domingos de Rana], era limitadíssima, só tivemos direito a dois meses de pagamento, depois não dava para mais. Antes da Volta, quando andávamos a treinar na região de Sintra ou Pêro Pinheiro, parávamos nas empresas de mármores para pedir esmola, para pedir apoio para ir à Volta. E algumas pessoas ajudavam. Que experiência! Houve um senhor que deixou o táxi e foi conduzir um dos nossos carros de apoio, havia o sr. Eduardo que nos pagava as dormidas e os sítios para tomar banho.

Como é que ficou suspenso seis meses depois de ir à África do Sul?

Convidaram uma representação portuguesa para ir à Volta à África do Sul. O Venceslau Fernandes, o pai da Vanessa, já lá tinha ido antes. Em 1978 fomos novamente, havia lá uma grande comunidade portuguesa, estabelecida depois de sair das ex-colónias, e aquilo teve grande impacto em Portugal. Ganhei lá a Volta, as notícias chegaram, tínhamos o patrocínio da TAP... À chegada fomos suspensos pela Direcção-Geral dos Desportos, supostamente porque tínhamos pactuado com apartheid.

Depois faz então o recorde de quatro vitórias na Volta a Portugal.

Na estreia tinha sido sexto, nos dois anos seguintes fui à tropa, mas não me posso queixar. Era soldado na secção desportiva da Força Aérea, estive 21 meses na Ota, a 30 km de casa. Em 1979 ganhei a volta mas uma semana depois fui desclassificado por doping. Fui um ano para França, voltei para o FC Porto e integrei a equipa que ganhou a Volta com o Manuel Zeferino. Depois alcancei esse recorde de vitórias. Eu lidava muito bem com a pressão, com o querer ganhar, ao contrário de outros.

Disse que havia ciclistas que não conseguiam pregar o olho quando tinham a amarela na mesa de cabeceira.

Exactamente. Uma coisa é fugir numa etapa, outra é andar todos os dias de amarelo. É esse o problema das provas por etapas. Havia quem estivesse talhado para trabalhar para os outros, mas eu estava decidido a chegar à amarela e não a tirar. Uma coisa é ir à cara do touro, outra é ser ajuda. Podia ter ido mais longe, se ganhasse as voltas de 1984 e 1987, mas ganhei o que tinha a ganhar.

Nesses dois anos foi suspenso. Fale-me do doping.

No primeiro caso [1979] reconheço que tive culpa, porque acusei a presença de uma substância proibida, uma anfetamina. Sabe, acreditei nas pessoas, era jovem e tinha pouca experiência. Isso ajudou-me mais tarde, passei a desconfiar de tudo o que me rodeava. Foi muito marcante ganhar a Volta e uma semana depois perdê-la!

E em 1984 e 1987?

Aí foi diferente, descobriu-se uma substância derivada da efedrina. Na altura jurei pela minha filha que não tinha tomado nada, agora posso jurar por ela e pela minha neta. Nunca na vida usei aquilo. Na altura lia tudo antes de ingerir qualquer coisa, não consegui encontrar explicação. Mais tarde cheguei a falar com o dr. Luís Horta [presidente da Autoridade Antidopagem] que me explicou que a substância podia estar presente em alguns suplementos alimentares. Na altura tinham chegado umas coisas novas ao clube, uns produtos que o presidente João Rocha [Marco Chagas estava de novo no Sporting] comprava nos Estados Unidos, também para o futebol. Eram excelentes, alimentavam e tinham uns sabores deliciosos. Antes disso os abastecimentos faziam-se com fruta, açúcar, pedaços de marmelada... Sem ter culpa, fui suspenso e impedido de discutir a vitória nessas Voltas. Ao contrário do que se diz, não fui desclassificado depois de as ganhar.

Que ciclismo é este em que se gastam milhões para apurar o doping e também para tentar combatê-lo?

As coisas chegaram a um ponto complicado para toda a gente, mas especialmente para os atletas. Hoje é tudo muito sofisticado. Acho que ultrapassámos todos os limites, mas o ciclismo também tem sido bode expiatório, é a modalidade que mandam à cara do bicho. Os atletas procuram o que é melhor? Verdade! Os laboratórios querem ganhar milhões? Verdade! Era importante que os ciclistas, os empresários, os médicos, todos percebessem que chegaram ao fim da linha. Não é preciso ser herói para subir uma grande montanha, basta trabalhar. O que é que pode levar um ciclista a tentar uma autotransfusão e quase ir morrer ao hospital? É o fim! Não se consegue subir a montanha? Olhe que se sobe, com treino. Eu fiz duas voltas a França e sou uma pessoa perfeitamente normal.

E o Joaquim Agostinho, como era?

Ah, esse não era normal, esse era um fora de série. Nós somos pessoas comuns, alguns com algum jeito, mas ele era o fora de série, posso dizê-lo, lidei com ele, fomos companheiros de quarto. E olhe que o apanhei a caminho dos 40 anos! Ele só começou a correr aos 25, agora imagine se tivesse feito formação desde miúdo. Ah, fez dois terceiros lugares na Volta à França, mas teria ganho a corrida várias vezes.

Conte-nos uma história.

Conto duas. A primeira é caricata... Sabe que ele fazia mergulho? Num estágio que fizemos na Cote D''Azur ele levou o equipamento de caça submarina. Um dia vestiu o fato, pegou nos óculos, no respirador e na arma e foi mergulhar. Eu fiquei na praia a ver. Repare que não havia cá botija de oxigénio. Ele mergulhou, veio ao de cima, voltou a mergulhar e desapareceu. Minutos! Sei lá, minutos! Eu ali a ficar em pânico e o tipo nada. Eu estava apavorado! Minutos! Depois lá apareceu, chamei-o e ele: "O que foi? Tudo normal!" O Joaquim Agostinho tinha uma caixa torácica com o dobro da largura da minha. Depois disse-me que estava habituado a fazer aquilo, porque em África, quando esteve Moçambique na guerra, era ele que ia mergulhar para agarrar os peixes para a malta comer. Sabe como é, mandavam uma granada para dentro de água, aquilo rebentava, depois iam lá buscar os peixes. E a outra história: na Volta ao Algarve, em 1984, no dia antes da queda que viria a ser fatal, fizemos a ligação entre o hotel e o início da etapa de bicicleta. Pelo caminho ele disse-nos que achava que não ia fazer um grande resultado no contra-relógio. "Você está maluco!", respondemos. Olhe que ele tinha 41 anos! Mas deu um minuto a toda a gente! A mim deu-me um minuto e eu até achava que percebia alguma coisa daquilo! E foi de amarelo que morreu.

 

In ionline.pt

 


 

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