«BANHO DE HUMILDADE» PRECISA-SE, EM ALVALADE… Sporting – 1 U. Tomar – 1 Versão para impressão
Terça, 21 Janeiro 1969 22:20

690123sporting-utomar1_smallCom um Sanjoanense-Benfica por repetir, se calhar à porta fechada e sem bola, esse pequeno «objecto» do futebol que, por mais voltas que lhe dêem, continua «irremediavelmente redondo», como diria o Artur John, tivemos agora a primeira jornada de acerto das contas do campeonato com a realização de um jogo Sporting-União de Tomar adiado, por força (em bolivares) de uma famigerada viagem dos «leões» à Venezuela, onde, ao que se disse, iam realizar, com um mágico «shampoo» capaz de pôr os neurones num brinquinho, a «lavagem ao cérebro» necessária para regressarem, como novos, a este »Nacional» de 1968-69, de que têm sido a mais espectacular decepção.

Não foi nada feliz para o Sporting este regresso ao seu «home» que está longe de ser agora, no nervosismo de uma massa associativa e simpatizante altamente desconfiada e «dorida», meio esgotada de tolerância e de paciência, o «sweet home» de uma vida remansada e ditosa.

 

Em frente da equipa do União de Tomar, estreante da prova e 10.º da classificação, a turma «verde-branca», já derrotada em Tomar, na 3.ª jornada da competição, não foi além de um empate – e de um empate dramático, arrancado com «forceps», a quatro minutos do fim do jogo, depois de uma hora e vinte e sete minutos em que o espectro de uma derrota escandalosa pairou sobre Alvalade.

Podia a cedência do 14.º ponto perdido pelos «leões» numa prova onde entraram com tantas ambições e, mesmo, ânsias de triunfos, estar marcada daquela acidentalidade que é, digamos, a base de uma definição filosófica de desporto – do tal desporto, para aí tão esquecido e tão mal tratado, em que, como glosava Cândido de Oliveira, mestre dos mestres, «a bola é redonda e são onze de cada lado».

 

Mas não. Em face de um adversário brioso e «engraçadinho», construído à base de «material de refugo» dos grandes clubes, às vezes tão equivocados na hora de realizar aquilo a que se pode chamar a «primeira escolha», o Sporting realizou, deixemo-nos de eufemismos e panaceias, mais uma daquelas suas exibições incaracterísticas e desgarradas, em que um sujeito, espectador anónimo ou crítico responsável, não consegue encontrar o mínimo de harmonia e de mecanização e, muito menos, a linha coerente de uma idónea e esclarecida fidelidade a um estilo ou padrão de jogo.

É evidente que, uma vez mais, a equipa da «casa» dominou territorialmente, forjou mais ocasiões de golo, enfim, realizou aquele «engarrafamento» do adversário que certo público interpreta como razão mais do que suficiente para a conquista de uma vitória, assim a modos que atribuída por pontos, depois da contagem dos ataques realizados por cada um dos antagonistas em presença.

 

Já ninguém que tenha um mínimo de compreensão da fenomenologia daquilo a que se chama, por mera propensão sistemática, «futebol moderno», dá a esse tipo de domínio anárquico, às vezes avassalador, a validade de um argumento futebolístico positivo pois, ao contrário, considera-o nem que seja só no íntimo, para as secretas conversas com o travesseiro, tremendamente fútil e aleatório.

O que se passou, uma vez mais, com o Sporting, neste jogo com o União de Tomar de Kikis, Calós, Barnabés, Duis, Totóis & C.ª, foi que a equipa denunciou uma terrível falta de imaginação e de engenho para resolver os problemas do jogo, desenvolvendo, pela centésima vez, digamos, um futebol híbrido, nem peixe nem carne, agora ambicioso, com abuso do passe longo, de mais do que problemática colocação (adequada) da bola, daqui a pouco ingénuo e irrelevante na tentativa de «tabelinhas» impossíveis ou num despropositado abuso de correrias com o esférico.

 

Sem tirar mérito à equipa nabantina, a que Oscar Tellechea forneceu um mástique subtil capaz de, aqui e ali, ser a base material de uns curiosos nacos de «association» (não esquecemos, a propósito, que a turma visitante jogou com dez homens durante os últimos 26 minutos do jogo, por expulsão de Cláudio), o que esteve em foco neste às vezes «complicado» desafio, foi essa já tradicional incaracterização do futebol «leonino», que não depende dos «4-2-4» ou dos «4-3-3», mas da sedimentação de uma atitude inteligente perante o jogo – atitude de opção, através da qual seja possível extrair dos jogadores de que a equipa dispõe, o máximo do rendimento útil.

Ora, a nosso ver, tanto tem tardado a imposição à equipa «leonina» de um estilo ou padrão de jogo que ela, hoje por hoje, já não é apenas uma equipa que joga mal mas, muito pior do que isso, uma equipa doente, nitidamente «apardalada», com[o] se diz em gíria, e, por isso, um conjunto intranquilo, sem confiança, triste, desanimado, diríamos mesmo desesperado, para definirmos, em pleno, o moral daqueles homens.

Estamos a recordar várias situações deste jogo com o União de Tomar e, em especial, algumas oportunidades de golo soberanas, daquelas em que está tudo feito – falta só empurrar a bola para dentro da baliza.

 

Na tentativa de resolução de cada caso que lhe surgia, por mais fácil que fosse, a maioria dos jogadores «leoninos» revelou quase sempre, mais do que inépcia, uma confrangedora falta de tranquilidade, de discernimento, de imaginação, de tono anímico, de confiança, de serenidade.

E, em face deste panorama, nós somos forçados a considerar, em relação ao estado actual da equipa do Sporting, duas ordens de razão que são, digamos, a infra e a superestrutura da sua, para muitos, caótica situação:

1. Razão técnico-táctica – o hibridismo de um jogo que, por isto ou por aquilo, não atingiu a expressão definida de um estilo ou padrão devidamente assimilado e, portanto, capaz de garantir um mínimo de uma, ao menos «apontada», intenção ou regularidade exibicional;

2. Razão psicológica – a patologia de uma situação em que, em matéria de «bola», «ninguém acredita em ninguém», dentro, fora, de fora para dentro, de dentro para fora, situação que é a base de um «desvio óptico», segundo o qual os jogadores parecem piores do que são realmente.

Considerando o carácter de crise, mais ou menos temporal e, portanto, passageira da segunda destas razões, que poderemos nós dizer do problema-base que pertence, logicamente, ao foro técnico-táctico?

 

O Sporting não tem, a nosso ver, já não dizemos um quadro de jogadores ideal, mas um quadro de jogadores com o valor potencial necessário para realizar a sua ambição n.º 1, que «envenena» o conjunto, lá dentro, e o seu fiel e paciente público, cá fora: jogar para o título.

 

Tanto quanto pensamos do «plantel leonino» há em Alvalade:

1. Alguns (X, Y ou Z, mas sempre em percentagem inferior a 50 por cento em relação ao total dos elementos da equipa), bons jogadores;

2. Um problema de desequilíbrio de características em relação às necessidades de harmonização do conjunto, com «superavit» de jogadores de certo tipo e claríssimo «deficit» de elementos doutro género e doutra capacidade.

Que se impunha, logicamente, fazer? Menos do que delirar, sonhando com a conquista de grandes triunfos, aceitar a realidade de uma relativa modéstia técnico-táctica e procurar disfarçá-la com a adopção de um estilo, processo, sistema ou padrão de jogo, como se quiser, em que se realçassem as qualidades dos jogadores realmente válidos ao mais alto nível e se disfarçassem os defeitos e as insuficiências das unidades menores do conjunto e que são algumas…

Ora, essa tarefa, exigindo realmente um técnico inteligente e, acima de tudo, com personalidade e independência, impõe mais qualquer coisa: um estado de espírito colectivo, da melhor formação desportiva, que encoraje a realização de um trabalho progressivo, profundamente humilde, e, portanto, sem uma «exigência obcecante», que actua sobre o psiquismo dos jogadores e, repetimos, os faz parecer piores do que são.

Um exemplo do panorama desportivo nacional e do Campeonato: a equipa do F. C. Porto. Sem entrarmos na ingrata, especiosa, e raramente válida aferição do valor dos jogadores das duas equipas, não nos parece que haja entre a formação tão sabiamente conduzida por José Maria Pedroto e uma equipa que, racionalmente, se forme e prepare adequadamente em Alvalade, uma diferença de 1.º para 6.º e de 24 pontos para 18 pontos.

 

Que falta, portanto, ao Sporting?

Disciplinar técnica e táctica e moralmente os seus jogadores através de um «banho de humildade» depois do qual, com a colaboração de um público tolerante e paciente, em vez de certos narcisismos inadequados, de certa «passividade dinâmica», de certa «tristeza lúgubre», a equipa denunciaria adequada ânsia de «vencer na vida» mas, de fato-de-macaco, fazendo força…

Estamos a lembrar-nos de várias fases do desafio com o União de Tomar que, com os seus pézinhos de lã, mal se apanhou a ganhar, aos 9 minutos de jogo, tomou, com maior ou menor escandaleira, aquela enervante atitude de «seringar» o adversário, às vezes de uma forma muito válida, graças à capacidade de retenção de bola de um Ferreira Pinto e de um Cláudio, bons executantes e, principalmente, homens «sabidões»; outras, de um modo mais tosco e antipático, com a «charutada» para fora, a demora nas reposições da bola em jogo, os longos passes a atrasar, enfim, todo o reportório de artimanhas que fazem parte da «cartilha» de uma equipa que, em campo adverso, ainda por cima chamado Estádio Alvalade, está a ganhar, deleitadamente a ganhar…

 

Em mil e um lances de iniciativa «leonina», mais válida, firme e idónea na primeira parte do que na segunda, que víamos nós?

1. Em vez de os jogadores «irem para a bola», de harmonia com um processo dinâmico de «corre e desmarca», que é do ABC do futebol, os jogadores «esperavam pela bola»;

2. Em vez da sistemática imposição de constantes mudanças de ritmo, que são a maior machadada que se pode dar na tranquilidade e na altivez do adversário, optou-se quase sempre por um ritmo «standard», que antes de ser lento, passivo, frio, triste, conformado, era, acima de tudo, sempre igual;

3. Em vez de uma taxativa obediência ao velho princípio «quem não tem a bola, defende; quem tem a bola, ataca», com todo o dinamismo e toda a inteligência que tal atitude impõe, ora no «largar» rápido da bola, ora na sua conservação e «uso», tivemos durante longos períodos a toada «turística» do bater do esférico para o barulho e para a confusão;

4. Em vez de variar o jogo, tornando-o o mais possível complicado e imprevisível para o adversário, teimou-se num futebol em funil, «telegrafado», com aviso prévio, não vá o destinatário estar desprevenido ou… fora de casa.

 

O resultado não poderia ser outro, por muito que a tal famigerada vantagem territorial, às vezes, neste manhoso futebol moderno, fomentada e utilizada pelo adversário como engodo, tal como se faz para a pesca do atum ou a caça dos pardais, disfarce a coisa, pelo menos para quem tem uma «óptica contabilística» do futebol.

E aqui está como o Sporting esteve à beira de sofrer a sua primeira derrota do «Nacional» em Alvalade, consentindo no entanto, terceiro empate, em cima dos do Guimarães e do Benfica, e perdendo o seu 14.º ponto do campeonato, em que já tem quatro derrotas e três empates fora (só ganhou uma vez, na Tapadinha!) e marcou apenas 21 golos – menos que o Benfica (31), Académica (29), F. C. Porto e V. Setúbal (25), V. Guimarães e Cuf (24)!

É evidente que não está, que não pode estar bem o futebol «leonino» – um futebol que, em 16 jogos, só quatro vezes obteve mais do que um golo, tendo já averbado nada menos do que seis «zeros».

 

Não se justifica já, para um jogo de história simples, disputado há dois dias, uma exaustiva apreciação do trabalho dos jogadores das duas equipas, como é da tradição das crónicas formais, escritas em cima do acontecimento.

Poder-se-á dizer que o Sporting teve na base dos seus raros períodos de futebol mais discernido, dois homens: Pedras e José Morais, cuja capacidade de execução e de visão do jogo esteve claramente acima da dos demais.

Não encontramos na defesa, fora a tradicional «ralé» de Pedro Gomes, motivo para grandes elogios – houve um «filoxera» qualquer que se instalou no consagrado sector da formação «leonina» e, se não lhe acodem com um «fungicida» adequado, tudo aquilo estremece mal corre até à área de perigo um Lecas, um Alberto ou um Totói…

No ataque, o costume. Fora um problema de opção quanto à formação da «dupla» dos «pontas-de-lança» que não está resolvido – nem sabemos se não há por ali fenómenos de rejeição como nas transplantações do dr. Barnard… – há a questão, não dos extremos (vamos lá sepultar a terminologia do «W M»!) mas dos homens que jogam ou deviam jogar pelos flancos. Chico é, realmente, um valor firme da equipa mas parece-nos estar a exagerar na adopção da fórmula finta-drible-centro, mais ou menos indiscriminada – de chapa. José Morais, quando desce, joga sistematicamente «para dentro», utilizando o pé contrário e, pese à sua alta categoria, o processo por sistemático, é facilmente detectável.

Esta equipa do União de Tomar que sempre nos deu a ideia de ter uma ideia, foi o que é uma equipa «pequena» quando joga no campo do adversário – e do adversário… «grande». Defesa fechada, meio-campo manhoso e contra-ataque «com veneno», como o provam o golo, uma bola salva sobre o risco por Pedro Gomes e alguma coisa mais de fazer cardíacos entre os espectadores de Alvalade.

 

De altamente positivo há na equipa o seguinte:

1. Um guarda-redes de bom talhe atlético, valente, elástico e decidido – Arsénio;

2. Um defesa-central que custa aceitar como «refugo» e, aqui para nós, fazia agora um jeitão ao Sporting, com Armando e José Carlos lesionados – Caló;

3. Dois homens de meio-campo bons executantes e muito experientes, capazes de conservarem a bola por longos períodos,  que são, como é óbvio, períodos de descanso para a equipa e de frustração para o adversário – Ferreira Pinto e Cláudio.

Se dissermos que o resto tem ânimo e ganas de jogar, compreende-se perfeitamente que a equipa, não vai ser, com certeza, acidental visita da I Divisão…

O consagrado árbitro algarvio Rosa Nunes, grande vocação para as ingratas tarefas do apito agradou-nos na condução do jogo – é um árbitro que está lá e que diz isso aos jogadores em todos os momentos e circunstâncias – mas não foi capaz de fugir à «alergia dos penalties» que é um dos grandes males da arbitragem indígena.

Considerando indiscutível a falta cometida por Kiki sobre José Morais (24 minutos da segunda parte) não sabemos se, pouco depois, Alexandre Baptista não incorreu no mesmo delito na hora de certo contra-ataque dos nabantinos conduzido por Alberto e mal resolvido por Damas, em primeira instância…

Foram o que se chama agora dois «penalties» por omissão e daqui aconselhamos a equipa que se considerar prejudicada a protestar o jogo.

Muito a sério: é limpinho que o protesto será julgado procedente…»

 

Estádio José Alvalade, em Lisboa

Árbitro – Rosa Nunes, de Faro

SPORTING – Damas (2); Celestino (1), Armando (1) (33m – Alexandre Baptista (2)), José Carlos, «cap.» (1) e Pedro Gomes (2); Gonçalves (1), Pedras (2) e José Morais (2); Chico (1), Ernesto (1) e Lourenço (1) (66m – Marinho (1))

U. TOMAR – Arsénio (3); Kiki (2), Caló (3), Faustino (2) e Barnabé (2); Ferreira Pinto, «cap.» (2), Dui (2) e Cláudio (2); Lecas (1) (67m – Bilreiro (1)), Alberto (1) e Totói (1)

0-1 – Dui – 9m
1-1 – Pedras – 86m

 

«Resultado da 1.ª parte: 0-1. Golo de Dui, aos 9 minutos.

Aos 33 minutos, Armando lesionou-se num choque com Alberto e foi substituído por Alexandre Baptista (2).

Resultado da 2.ª parte: 1-0. Golo de Pedras, aos 41 minutos.

Aos 19 minutos, o árbitro expulsou Cláudio, do União de Tomar.

Aos 21 minutos, Marinho (1) entrou para o lugar de Lourenço e, um minuto depois, na equipa do União de Tomar, Bilreiro (1) rendeu Lecas.

Aos 31 minutos, José Carlos lesionou-se, esteve alguns minutos a receber assistência fora do rectângulo e voltou ao terreno, mas visivelmente incapacitado.

 

In http://uniaotomar.wordpress.com - (“A Bola”, 23.01.1969 – Crónica de Vítor Santos)


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