Jorge Pina. Do ringue de boxe para a pista de atletismo Versão para impressão
Sexta, 10 Junho 2011 20:47

110610jorge_pinaÉ uma das referências do pugilismo nacional e aos 35 anos está praticamente cego. Hoje vai tentar os mínimos para Londres 2012

 

Comecemos pelo fim: "Jorge, e os dentes de ouro?" Atira-nos um sorriso envergonhado, se calhar não foi boa ideia tocar no assunto. "Bem, isto foi por causa da minha filha. Ela é que disse para eu pôr o ouro... e depois há também o [Mike] Tyson, que tinha uns dentes iguais. Dizem que é a minha imagem de marca, mas quero tirá--los." Estávamos no fim da entrevista. À nossa frente, um pugilista encorpado de braços cruzados e músculos que intimidam. Não o chegámos a conhecer. O primeiro round já tinha acabado (em 2005, pelas nossas contas) e no segundo assalto quem subiu ao ringue foi o corredor.

 


Confuso? Então, prepare-se. Esta história começa num campo de futebol, há cerca de 25 anos atrás. "Jogava à bola, mas não era nada de especial. Não era nenhum Cristiano Ronaldo. Um dia deram-me uma cacetada por trás e a minha reacção foi voltar-me e dar um murro no rapaz. Claro que o árbitro me mostrou um vermelho directo e eu fui para os balneários chorar. Depois pensei: já que não tenho jeito para o futebol, porque não tentar o boxe?" Jorge Pina é um homem de riso fácil e passo firme. Enquanto caminhávamos em direcção a um dos cafés da Cidade Universitária, explicou-nos que consegue facilmente desviar-se dos obstáculos, ainda que não veja mais do que manchas. Quem passa por nós, e em poucos passos desaparece do alcance de Jorge, não imagina que é ali, em cada passo, que o antigo pugilista trava o maior combate da sua vida.

"Não queria andar a vaguear e resolvi inscrever-me num clube perto de casa. Comecei nos Económicos, mas fiz a minha carreira quase toda no Sporting." Ainda hoje recebe telefonemas a perguntar pelo "campeão" e nem nós não resistimos a pedir-lhe um rugido. Um rugido de leão, como o célebre grito que fez a audiência vibrar durante um combate, há 20 anos. João Pina é uma das referências do boxe português. Foi vários anos campeão e é o único pugilista com três títulos nacionais em três categorias diferentes. "O que me custa mais é não poder competir. Na altura, estava numa fase muito importante da minha carreira. Ia disputar um título mundial quando fiquei cego."

Pina, como é conhecido nos ringues, estava a treinar em Espanha quando começou a perder a visão do olho esquerdo. "Via borbulhas e formas estranhas. Na altura achei que fosse por causa do esforço e, como o médico não me alertou da gravidade do problema, continuei os combates", conta ao i. A intolerância à luz aumentou e, quando regressou a Portugal depois de uma competição na Polónia, teve também que voltar ao médico. "Tinha a retina deslocada e precisava de ser operado de urgência." Passou a entrar e a sair do bloco operatório com a mesma frequência com que antigamente subia aos ringues, até que perdeu totalmente a visão do olho esquerdo. Depois disseram--lhe que também teria que operar a vista direita, mas quando saiu do hospital via menos do que quando tinha entrado. Hoje, com 35 anos, vive com cerca de 10% da capacidade do olho direito. Mas, garante, só começou realmente a ver depois de ter cegado.

"se não me levantar vou rastejar" Abre os olhos como se distinguisse cada traço do nosso rosto e lança-nos a pergunta que o atirou para a pista de atletismo poucos dias depois de uma consulta: "A vida não acaba, pois não?" Recebeu o telefonema de um amigo ("o grande amigo Nuno Magalhães") com quem costumava correr ao fim-de-semana e, poucos dias depois, já estava a treinar com um guia. A primeira grande vitória foram os mínimos para o campeonato do mundo do Brasil. Depois, os Jogos Paralímpicos de Pequim, em 2008. Sabia pouco de atletismo, mas lançou-se como um louco. "Eu estou constantemente a tentar superar-me. Imponho-me metas duras, objectivos impossíveis. É isso que me faz continuar a correr. O difícil nunca me deu pica." Jorge Pina caminha, cai, levanta-se. Caminha, cai, levanta-se. E não se cansa: "Se um dia não me conseguir levantar, ainda vou rastejar" (esquecemo--nos de perguntar se aprendeu o lema durante o tempo em que esteve nos pára--quedistas, ou na Bósnia, onde foi atirador). Depois de cego voltou a estudar e tirou um curso de massagista e auxiliar de Fisioterapia. Ontem, quando falou com o i, já tinha treinado durante uma hora e estava na pista deste as oito da manhã. Normalmente, não tem tempo para um café tão demorado. Para além do trabalho, tem que ir às aulas (está a terminar o 12.o ano) e tem, ele próprio, que ensinar. O Pavilhão dos Loios, em Marvila, é a sede da Jorge Pina Boxing Team, uma associação que proporciona aos miúdos dos bairros de Chelas uma oportunidade para perceberem o boxe de outra forma, "como um desporto inteligente".

Hoje a rotina volta a correr para longe dos ringues. Jorge vai estar em Coimbra, a tentar os mínimos para os Paralímpicos de Londres, nos Jogos de Portugal. A competição conta com mais de 800 atletas, a competir em 15 modalidades, durante dois dias. "A federação e o comité dão-nos apoio, mas é preciso mais. Mais meetings, estágios, provas, competições fora do país. Os Jogos de Portugal são uma excelente oportunidade para dizermos ''nós estamos cá, nós somos bons, nós conseguimos''. Até porque, em todas as competições internacionais, os atletas de desporto adaptado trazem sempre medalhas para o país." Jorge conta-nos que para carimbar o passaporte londrino basta-lhe correr a maratona, onde tem mais possibilidades. Mas o fácil, volta a lembrar, não "dá pica". "Estou a treinar para os 800 e 1500 metros. É difícil, mas eu preciso desse desafio."

Dos ringues para as pistas. Da pista da Cidade Universitária para a nossa frente. "O Pina dos ringues, das noitadas, das maluqueiras já não existe", garante-nos. Então, quem é este Jorge? "Também não sei. Mas estou com muita vontade de descobrir. Tenho uma grande paixão pelo boxe, mas actualmente estou mais apaixonado por mim e pela vida."

 

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